Nem tudo é autismo em uma criança com autismo. À primeira vista isso parece óbvio, mas nem sempre é na prática. Não é raro, depois do diagnóstico, que em algumas situações a criança deixe de ser enxergada como um ser único para ser vista apenas como portadora de um transtorno. Assim, tudo o que disser respeito a ela acaba sendo, de alguma forma, relacionado ao autismo.
Ele chora muito na escola? É porque é autista. Ele bateu no coleguinha durante a aula? Claro, é autista! Ele está triste há dias? Autistas são assim mesmo.
Como assim? Crianças típicas também choram, podem bater nos coleguinhas, ficam tristes… E quando isso ocorre os adultos tendem a procurar saber a causa do problema e ajudar a solucioná-lo. Porque em se tratando de uma criança autista este cuidado nem sempre ocorre e a situação às vezes é tão banalizada?
A criança com autismo pode ter batido no coleguinha durante uma disputa por um brinquedo, tendo a mesma reação que uma criança neurotípica provavelmente teria em determinada idade. De qualquer maneira, quando esse tipo de situação ocorre, sempre é dentro de um contexto. Qual foi ele? Isso foi investigado? Muitas vezes não é, por ser mais fácil e cômodo para o professor atribuir qualquer comportamento a um transtorno do que repensar estratégias para administrar esse tipo de situação tão comum em sala de aula.
Já trabalhei com educação infantil. Perdi a conta do número de vezes que entreguei crianças para os pais com marcas de mordidas feitas por coleguinhas. E nunca fui professora de alguma criança com autismo. Eu mesma, quando criança, já mordi e bati muito nos colegas e por isso tinha o apelido de “Mônica”. Até onde sei, sou neurotípica.
Entretanto, infelizmente os relatos que escuto são no seguinte sentido: Se uma criança chega em casa mordida e o coleguinha que fez isso é autista, os pais não falam : Fulano chegou em casa com uma mordida. E sim: Tem uma criança autista na sala do fulano, e ela o mordeu.
Mesmo que essa mesma criança tivesse sido mordida dez vezes antes por outros colegas, na décima primeira, quando a criança que fez o ato tem autismo, adivinhem a que a mordida é relacionada de imediato? Ao fato de se tratar de uma criança autista. E ao pressuposto de que esta seria necessariamente agressiva!
Não estou banalizando as tão temidas mordidas. Claro que quando estas são recorrentes ou em casos em que há uma mesma criança agredindo outra freqüentemente, isso tem que ser investigado e merece um olhar mais apurado da escola. Independente de alguma delas ter algum transtorno de desenvolvimento ou não.
Infelizmente, essa postura de responder tudo no piloto automático com a frase “Mas ele é autista”, pode vir também dos pais e familiares próximos destas crianças. Observo não ser raro que alguns pais demonstram estar sempre na expectativa de que os outros devem fazer concessões imediatas a seu filho o tempo todo devido a ele “ser autista”. Tal postura pode se tornar inadequada e acabar por afetar as relações. De forma alguma estou dizendo que as diferenças e peculiaridades desta criança não devem ser reconhecidas. Mas, como já afirmei: Nem tudo é autismo.
Outro exemplo: Todo mundo que tem irmão sabe que, quando criança, as disputas de toda ordem são freqüentes. Pense por exemplo em um irmão de uma criança autista que sempre nessa situação deve ceder de imediato por que… “filho, você sabe né, seu irmão tem muitas dificuldades…” sem que estes pais busquem arranjos para tentar lidar com a situação de outras formas, visando o desenvolvimento de flexibilidade e tolerância à frustração de ambas as crianças, por exemplo. Pedir para o irmão ceder prontamente seria a melhor forma de conduzir a situação em cem por cento das vezes?
Obviamente sei que na prática, nem sempre esses outros arranjos são possíveis. Crises acontecem, a criança desorganiza às vezes e é muito bom contar nesses momentos com a tolerância, solidariedade e empatia das outras pessoas. No entanto acho válido esse “auto-policiamento” para que a gente não caia na armadilha de atribuir automaticamente ao autismo todas as questões referentes àquele serzinho único, que é muito mais que um diagnóstico. Que consigamos ficar atentos a isso e mostrar o caminho para os que convivem com nossas crianças e ainda não conseguiram ver para além de um número de CID.
Um grande abraço e até a próxima.
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